sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Falando e andando

Seguia pela rua, meu caminho habitual, aquele “olhar estrangeiro” que por vezes acompanha a cidadã aqui...

É... Porque normalmente são só 2 posturas e atitudes... Ou estou super concentrada em tudo que vejo e sinto, por tudo e todos por onde passo, num mapa urbano que rastreia, identifica e reconhece tudo que há. Do tipo... em questão de segundos estou sabendo quantas pessoas estão vestidas de vermelho na praça, quantas câmeras existem presas aos postes e o que elas estão vendo, quantas pipocas há em cada carrinho, há quanto tempo provavelmente foram feitas, porque tem latas pelo chão, quem está de passagem e quem está esperando alguém, quem é esse alguém que está chegando, quantas lâmpadas queimadas há no letreiro e porquê, quem e como pintou aquele letreiro, o que ele tentou dizer com isso e o que provavelmente ele consegue, porque há tantas tampinhas de caneta pelo chão, mais uma carta de baralho perdida pela cidade, para quem devem ser as flores na mão do menino, de onde vieram essas flores, se o ônibus passou faz tempo ou se acabou de sair, o que fez aquela senhora não combinar aquela calça enfiada no rabo com aquela blusinha horrorosa, e por aí vai...

Ou estou completamente obsedada, em outro estado de espírito mesmo, alheia ao mundo lá de fora total... Mal sabendo onde estou e para onde mesmo eu estava indo, olhando o mundo lá fora com meus “olhos de estrangeiro”, como se visse o mundo pela primeira vez, como se eu tivesse acabado de chegar de outro planeta, num reconhecimento de território nunca antes visto...

Eu estava neste estado.

Então, como acontece algumas vezes, alguém encosta na minha orelha, e cochicha de um jeito literalmente invasivo: “gostoooosa”.

Carái.... Eu mal vejo o que aconteceu. Só sinto o vulto se afastando e indo embora. Nem olho para trás para não correr o risco de parecer que eu estou dando corda para a figura. Aliás, nem olho para a figura. Podia ser o Johnny Depp pelado e dançando rumba que eu não estava nem vendo, ali no meu estágio abstração-total-de-ET-recém-chegado-nesse-mundo. Aperto o passo e saio logo dali. Um chacoalhão me trás de volta ao mundo e levo um tempo até entender “que pása, chico”...

Sim, por mais bizarro que isso possa parecer, acontece algumas vezes...

E eu juro que não entendo...

Minha primeira reação é pensar “como é que ele sabe?”. Há, há, há...

Sim de novo. Pois, 'por mais bizarro de novo' que isso possa parecer, eu realmente penso isso, e começo a rir sozinha... Uma risadinha sacana que acho que só eu conheço.

Depois entra um pingo de racional para pesar na balança... Eu estou bem vestida. Bem vestida não só no sentido elegante da palavra, mas eu estou “quantificadamente” vestida. Não estou ‘exposta’, estou cobertinha, elegante na minha simplicidade.

Não sou o tipo “gostoooosa”, de chamar atenção na rua, de bundão socado na calça da gang, um cafona sapato plataforma branco e megahair loiro e liso para fazer volume e ocupar espaço com meus piolhos de plástico. Sou discretinha... Do tipo que passa despercebida. Meio perua-light-com-layout-exclusivo, estilo “rock ´n roll meio nonsense”.

Mas chamei...

Vai entender...

Aí cai o pingo de racionalidade número 2...

O que passa na cabeça do cidadão para sair por aí cochichando no ouvido de alguém que ele nunca viu na viu na vida, para se dirigir a um desconhecido na rua para sussurrar “gostooosa” no ouvido dessa pessoa?

Faz algum sentido?

Isso acontece com você também?

Ou é só comigo mesmo? Sina de “pára-raio de maluco”?

- Aahh.... – então alguém levanta a mão ali no fundo, e balbucia buscando coerência – Vai ver se trata de uma pessoa expressiva, comunicativa, que quer falar o que pensa e sente, e o faz.

- Opa... Muitas vezes eu sou assim também. Nem por isso vou andando na rua, chegando no cangote das pessoas e falando: Gostoooso! Cafona! Desordenado! Burro! Lindooooo! Lerda!
Não faz sentido... É muita ‘expressividade’ para uma pessoa só.

- Aaahh... Vai ver ele não faz isso sempre ou em todas as circunstâncias, mas quis falar isso para você, para não perder esta oportunidade única.

- Mas ele nem sabe quem eu sou... Nem sabe que eu sou mesmo gostosa. Nem vai saber....

- E?

- E aí que ele podia se meter em encrenca com tanta “expressividade”... E se eu fosse mulher do delegado marrento, atacado e ciumento?

- Não, acho que não... Decididamente, você não tem cara de mulher-do-delegado-marrento-atacado-e-ciumento...

- E se eu fosse um travesti extremamente bem caracterizado, e o pegasse de surpresa... Na hora em que ele quisesse ver a pombinha encontraria o gavião?

- Hummm... Também não cola.

- E se eu estivesse de TPM e virasse com 3 palavrões e 2 tabefes atrás da orelha, rapá...

- Aaahh.... Agora você falou uma verdade, dona senhora complicada e perfeitinha. Mais provável, mais provável... Mas se vê que o cara é ousado, se dispôs a correr altos riscos só para ter ver com alguma cara desconcertada...

- Não é muito esquisito? Não é mesmo de se estranhar?

- Quer saber? Devia ser algum amigo seu tirando onda com a sua cara... E você nem olhou para trás para falar com ele. Antipática...

- É capaz... Ontem mesmo, na plataforma do metrô, passei por uma figura queridíssima. E se ela não tivesse me segurado pelo braço acho que eu nem a teria visto.... Putz, é por essas aí que eu vou ficando com fama de antipática... E na real é que sou meio de outro planeta mesmo...

- Então se liga, fofa! A hora que um bonitão pelado dançando rumba passar do seu lado você não vai nem ver...


... nessa casa se ouve King Crimson

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