quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Arroz-da-Kaya


A cachorra era cega e se chamava Kaya.

Mamãe fazia uma comidinha especial para ajudá-la em sua deficiência, e o grande prato era um super arroz vitaminado com cenoura.

Eu o achava lindo. Eu adorava a forma como as cenourinhas eram picadas e, claro, eu comia a comida da cachorra eu comia a comida dos passarinhos, eu comia as comidas do papagaio, eu comia plantas no quintal, eu comia creme dental com groselha (?!?) por que é que eu não comeria a comida da cachorra, né?

Bom... batizei o prato por aqui!

Não é “arroz”, não é arroz nem “risoto” “de cenoura”. É “arroz-da-Kaya” mesmo!
Faço igualzinho... Ou melhor, aprimorado. Cenourinhas picadinhas em forma de mini pirâmides, refogadinho no azeite, sempre boto alguma coisa verde para satisfazer minhas questões estéticas tipo uma salsinha ou hortelã, grãos integrais de luxo, gotas sutis de água de rosas.

Coisa simples, mas coisa fina.

Quem come, adoooora!

Mas quando eu digo que a receita veio “da comida da cachorra”, as caras mudam...

Impressionante!

- Aêêê... mó preconceito com o lado lúdico e criativo da cozinheira!

- Mó descaso com a memória afetiva da criança aqui.

- Mó radicalismo barato... ou desdenha de meu pratinho simples, porém cheio de histórias e sabores, ou desdenha do menu da minha cachorra.


Aí eu me pergunto...

Como nascem os preconceitos?

Ou como é algo besta a gente querer mais sobre o que se come?

Não tinha aquela lenda... “cozinha do restaurante e passado do(a) namorado(a) são coisas que não se deve saber, se não não come...” ?!?

Perguntou?

Falei.

- Inspiradíssima na comida da cachorra! Recheada das memórias mais saborosas da minha infância! Com gosto de cenourinhas, de carinho e de cuidado. E claro, com um toque de criatividade, de frescor, de cor e de amor. A real “cozinha contemporânea” do bistrô da fofa aqui... A “cusine du marche” em todo o esplendor da sua exuberância-da-simplicidade.



... nessa casa se ouvem solos de John Bonham

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Pequenos papos, grandes histórias


ou papéis soltos pela bolsa...


Eu tenho um canal de comunicação direto com as crianças, né? Tipo “uma freqüência que é só nossa no rádio da produção”.
A gente se fala sem ter que falar nada.
A gente conversa, se alcança de alguma forma, e bate altos papos, muitas vezes só com um olhar, um gesto.
Não sei bem como é, mas a gente se entende e se diverte assim.

Outro dia estava eu no metrô, batendo um “papo telepático” com uma guriazinha assim... Ela devia ter uns 5 aninhos, e nós ali conversando e rindo sem emitir nenhuma palavra.
De repente, ela fala (!)... Vira para mim e fala (!) assim:
- Esse aí é que é o seu marido? – apontando com a cabeça para o rapaz ao meu lado. Eu olho para o lado, espantada com o comentário dela, respondo na bucha:
- Não, não é não.
Ela segue:
- E quem é ele?
- É um “moço no metrô” – eu, já cada vez mais inconformada...
- E quem é o seu marido? – olhando à volta.
- Não tenho marido, querida. – ficando apreensiva com um questionamento tão descabido quanto inóspito da bichinha...
- Por que não? – ela, mais na bucha ainda, vai falando rapidamente...

O que dizer para a criatura numa hora dessas?
E o que dizer rapidamente?
(...)
E de forma sucinta porém elucidativa, contextualizando a vida e o mundo, sendo didática e explicativa mas bem rápido, antes do “next stop, Cinelândia Station”. (???)
Como explicar tantas histórias, tantos anos de vida, tantas situações e condições, como responder ‘uma pergunta de criança’ dessas, de forma coerente, abrangente e consistente???

Acho que consegui pensar rápido:

- Porque nós gatas já nascemos pobres, porém já nascemos liiiivres!

Ela me olhou meio de sorrisinho de lado, com uma carinha inquieta, como se nunca tivesse ouvido isso na vida (e provavelmente nunca ouviu...).
Eu olhei para a mãe dela (que tinha uma cara de quem bota Zé Menotti e Luciano e funk-pancadão no churrasco em casa aos domigos... E também cara de quem “só tem um marido” porque engravidou sem nem bem saber como e porquê, e nem em que isso implica, meio por aí... no meio dos caminhos da vida...).
Respirei fundo e pensei assim: Que ela cresça linda e lúcida, que ela saiba passar pela experiência de vida de forma nobre consigo mesma, com juízo crítico apurado, com discernimento bem equilibrado, sob bons valores de vida.
Dei uma piscadinha e desci...
E a carinha da criaturinha pensativa ainda ficou ecoando um tempo por aqui...




... nessa casa se ouve Cream