terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

pó de café e um disco do pixies

Então o vejo ali sentado – ao mesmo tempo concentrado, ao mesmo tempo tão disperso. Aquele olhar que ia longe... meio olhando para o teto, meio olhando para a paisagem . Um olhar que parecia voar, mas também parecia ser fixo, focado. Ele se vira para pegar um cigarro, vê que eu estou ali quietinha o fitando.

- Oi. Você está aí?

- Vim falar com você... estava tão quietinho. Nem interrompi. Fiquei só olhando mesmo. Está aí quietinho, pensando o quê?

- Dani, olha só... se você só pudesse ouvir um único som qual seria?

- Hein? Sei lá.... um único som? Se eu não pudesse ouvir mais nada, só um único som?

- É, é. -- ele, eufórico, diz rápido.

- O som da minha respiração, eu acho... Espero. – respondo rápido, e então paro para pensar melhor na questão.

- Não. Não... algo como se você fosse para uma ilha deserta e isolada e só pudesse levar um disco para ouvir para o resto da vida. Qual seria?

- Nossa!!! Como assim?

- É, é... ou um disco, ou um artista, uma banda... mas algo que seja o único som que você vai ouvir para sempre.

- Nossa de novo!!! Não sei, não sei.... Pode ser ao vivo? Posso levar uma banda comigo?

- Não! Presta atenção! – ele, empolgado, vai falando rápido e instigado. Perguntando com euforia, envolvido com essa questão filosófica profunda. Ele estava ali refletindo e meditando por toda aquela manhã, e então partilhava parte do processo comigo num misto de inquietação e excitação, meio que dividindo a crise, eu acho... E continua:

- Diz aí. A primeira coisa que lhe vem à cabeça.

Eu já estava ali meio acuada com esse processo inquisitório... Tentando pensar rápido e baixo, tentando não falar algo que me fizesse mudar de idéia em poucos segundos...

- Hummm.... talvez algo mais instrumental. Algum som não muito definido. Livre. Abstrato, surrealista e psicodélico. Algum disco de dub... um baixo e bateria bem marcados... Ou uma big band, com uma boa cozinha e uns sopros. Ai, ai... Não sei... Sei não... E se eu mudar de idéia? E se eu enjoar?

- E aí? Diz aí...

- Não sei, cara... Deixa eu pensar um pouco. Você está aí a manhã inteira pensando nisso, já chegou a uma conclusão?

- Mais ou menos... Ainda não sei...

- Então me deixa pensar 2 minutinhos... Quando é que eu vou para lá? Não dá tempo para escolher um pouquinho? Como é que ouve isso lá? Tem vitrola, toca-discos ou CD player? Faz frio ou faz calor? Chove? Que mais eu posso levar? Você também vai? O que você está levando para ouvir?

- Pomba, Dani... Não, não é sério. Não é fato. Quer dizer, não sei, acho que não. Hoje não. Mas você nunca pensou nisso quando você está ouvindo alguma coisa?

- Bom... tem sons que eu acho que eu vou ouvir sempre, tem discos que são todos bons, que eu ouço o disco inteiro e gosto dele todo. Tem outros que ouvi muuuuito, talvez pudessem ser as melhores opções. Não sei...

- Hummm.... E?

- E você?

- Pois é... Estava aqui pensando nisso... Tenho uma idéia. Acho que é a minha opção. Mas também me pego em dúvida, em crise com isso. Também já aventei essas questões todas, também acho que posso querer mudar a escolha, mas estou mesmo propenso a ter uma opinião a respeito já e agora, The Smiths.

- Nossa! Rock depressivo?

- É muito bom. Não enjôo nunca...

Paro para pensar um pouquinho... como em um pout porri mental de 27 segundos (ou menos) com todas as músicas dos Smiths que eu lembrasse na hora.

- Será? Tem certeza? Aquela “melancolia alegrinha” do Morrissey para sempre? Será que você agüenta?

- Pois é... não sei. Mas não consigo chegar em outra opção, com valores equivalentes... Boto tudo e todos na balança e acabo voltando para os Smiths...

- É, é bom. Gosto do Meat is Murder, gosto do outro disco, da rainha ... Gosto do Johnny Marr, ele é o cara... Mas estou aqui já pensando outra coisas...

- Diga lá.

- Além de um som para ouvir pelo resto da vida acho que eu gostaria de levar mais coisas...

- Sei, sei... – e ele franze um tanto os lábios, e também esboça um leve sorriso – Sapatos?

- Não, não. Coisinhas... uma caixinha de costura, papéis e lápis coloridos, uns cigarros, pó de café, um disco do Pixies...

- Olha aí! Olha aí. Respondeu! – ele fala rápido e alto -- Um disco do Pixies.

- Não, não é minha resposta não – interrompo de imediato --- Está no kit “algumas coisas a mais para levar”.

- Aaahhh mulheres...

- É pela associação com o pó de café....

- Hã?

- É... veja bem. Que ilha é essa? É minha? Estou lá sozinha por opção, cheguei de helicóptero, com um lenço de bolinhas esvoaçando por baixo de chapéu panamá, tomo um drink com guarda-chuvinha na beira da piscina com araras andando em volta, e fico lá o resto da vida ouvindo o mesmo disco? Porque sou exótica, excêntrica e, notadamente, anti-social.

- .......

- Ou se eu estiver sozinha em uma ilha deserta e isolada é porque talvez as coisas não estejam muito boas? ...

- Hein?

- Como é que eu fui parar lá? Naufrágio? Acidente de avião? O sertão já virou mar? Vai virar um acampamento, não é isso?

- Ai, ai... mulheres...

- Porque se for a segunda opção, acampamento é uó... é sinal de que tudo dá errado. Tem que aprimorar a técnica de entrar na barraca só para pegar os fósforos com o pé cheio de lama sem deixar que esse interfira na estrutura do lugar, porque é lá que se tem que dormir. Olha aí... para tomar nota: também levo uma rede. E mosquiteiro. Não durmo em barraca nem a pau.... Tem que se acostumar que o banheiro não é ali pertinho do quarto, para ir rapidinho, meio de olhos fechados, no meio da noite. Tem que descobrir onde a água para beber não esquente, e se acostumar que a do banho será sempre fria. Essas coisas, entendeu?

- E?

- E aí que acampamento é uó. Ilha reclusa e isolada é uó. Fazer comida no acampamento é uó... passar o resto da vida sozinha, ouvindo o mesmo disco, com o sol na cara, areia na bacuinha, é tudo uó... Vai acabar com meu bom humor matinal rapidinho, rapidinho... Mas se eu fizer um cafezinho e sentar tomá-lo olhando a paisagem e ouvindo um disco do Pixies melhora pacas. É sinal de que tudo vai ficar bem, sinal de que tudo vai dar certo.

- Leva então um disco do Pixies?

- Não! É isso que eu estou explicando. Não quero ouvir Pixies para o resto da vida. Só enquanto eu estiver tomando um cafezinho na ilha, tá. Se houver este momento é sinal de que está tudo bem. Situação sob controle.

- Então se você tiver café e um disco do Pixies está tudo bem?

- É sinal de que estaremos salvos.

- Bom saber para a próxima TPM...

- Não, para TPM as indicações são outras – respiro fundo para começar a explicar e ele se antecipa:

- Ta. Ta bom, deixa para lá. Eu também não estou plenamente convicto de minha escolha ainda. Diga lá... você veio me falar o quê?

- Chamar para almoçar. Está tudo pronto. Bora? Pode escolher a trilha do almoço.

- Já escolhi a da sobremesa... para acompanhar o café, tá.

 


Foi um papo real. Mais ou menos assim. Anos atrás...
com uma das figuras mais especiais e queridas que conheço,
em algum dos momentos que compartilhamos,
recheados de reflexão e filosofias da vida comum.






... nessa casa se ouve Quincy Jones

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